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As Bem-Aventuranças do Evangelho – II

Enviado em 14 de julho de 2015 | Publicado por feditora

 

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Por Mário Frigéri

“A palavra do Cristo, no Sermão da Montanha,

contém mais desafio que reconforto.”

Mariano J. P. da Fonseca1

 I – Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus.

Humildade é a virtude que leva o ser humano a reconhecer a relatividade de seu valor perante os valores alheios. O homem é pequeno elo situado em determinado ponto de uma corrente sem fim que, na Vida Universal, emerge do infinitamente pequeno e mergulha no infinitamente grande, vem do Nada e vai para o Tudo, sai do Caos e entra no Cosmo. É o reconhecimento de que, no equalizador do Infinito, não é maior nem menor que ninguém, pois sempre haverá, nessa corrente sem fim, alguém antes dele e alguém depois dele na jornada para Deus. Só conhecerá a grandeza divina quem reconhecer primeiro a sua pequeneza humana.

É tão sutil a humildade que quem a tem o desconhece, e quem julga possuí-la não percebe sua falta. Irmã gêmea da modéstia, a humildade leva seu possuidor a velar com discrição suas virtudes, mesmo quando as irradia em suas relações em sociedade. Ser humilde é reconhecer-se sob o comando de um Poder superior, conduzindo o homem a uma finalidade transcendente, que ainda escapa a seu pequeno entendimento. Ser humilde é estar de coração permanentemente ajoelhado diante de Deus, porque só há dois altares neste mundo ante os quais os seres humanos dobrarão os joelhos um dia: Jesus e a Dor. Bem-aventurados os que se ajoelharem voluntariamente ante a majestade do primeiro.

Entre os exemplos de humildade e fé presentes no Evangelho – além da passagem de Jesus lavando os pés a seus discípulos, que é o maior de todos (Jo. 13:1/11) –, um dos mais tocantes é o proporcionado pela mulher siro-fenícia. Sabendo que Jesus estava naquela região, a estrangeira o procurou e clamou, aflita: “Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de mim! Minha filha está horrivelmente endemoninhada!”. Ele, porém, não lhe respondeu palavra. Seus discípulos, vendo que Jesus a “ignorava”, rogaram-lhe que a despedisse, pois seu clamor estava incomodando a todos eles. Mas Ele respondeu com estudado desdém: “Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos”. Ela, contudo, não se ofendeu com a aparente desacolhida e replicou: “Sim, Senhor, porém os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos”. Jesus, então, vendo aquela flor macerada pelo sofrimento expor assim, publicamente, o seu mais íntimo perfume, exclamou: “Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se contigo como queres”. E desde aquele momento – diz o Evangelho –, sua filha ficou curada. (Mt. 15:21/8.)

O exemplo de submissão dessa mulher enternece nosso coração e nos preenche de uma grande compaixão por ela. Essa compaixão Jesus sentia desde seu primeiro apelo, mas prolongou de propósito o episódio para despertar a expectativa da multidão, levá-la a glorificar a Deus e coroar uma humildade viva com uma compaixão sublime.

 Pobres de espírito

A virtude da humildade também é traduzida, em outras versões, por “pobres de espírito”, tentando cada tradutor captar com mais autenticidade o pensamento original do Cristo. Pobreza de espírito só pode significar desprendimento, despojamento, no sentido de o bem-aventurado privar-se ou despir-se de tudo o que possa embaraçá-lo de alcançar a eterna beatitude. Não significa, em absoluto, miséria, mas que o homem pode possuir todas as riquezas, desde que não se deixe possuir por elas. Quanto mais pobre de espírito o espírito, mais poderoso se torna, mesmo na sua condição de humanidade.

A riqueza do Céu está disponível aos que se tornam insubmissos à riqueza da Terra, porque, como pergunta o Cristo: “Se, pois, não vos tornastes fiéis na aplicação das riquezas de origem injusta [qualquer riqueza terrena], quem vos confiará a verdadeira riqueza [a riqueza espiritual]?”. (Lc. 16:11.) Só se torna pobre de espírito o homem que encontra aquele “tesouro oculto” (Mt. 13:44) no campo de sua intimidade e, cheio de alegria, vai, despoja-se de todos os adornos materiais que apreciava até ali, e que são como ferrugem para a alma, a fim de possuir aquela joia sem igual.

Os céus se inclinam ante o homem verdadeiramente despojado. E a diferença entre o sobrecarregado e o despojado pode ser vista na parábola do fariseu e o publicano, em que ambos oravam no templo, um perto do outro. Enquanto o fariseu, posto em pé, agradecia a Deus por não ser “como este publicano”, o publicano, de olhos no chão, batia doridamente no peito e dizia: “Ó Deus, sê propício a mim, pecador!”.  Conclui o Cristo que este desceu justificado para sua casa, e não aquele, “porque todo o que se exalta será humilhado; mas o que se humilha será exaltado”. (Lc. 18:9/14.)

Jesus era pobre de espírito no seu sentido integral, porque não possuía nada e não carregava nada consigo, exceto o poder de possuir em latência e pronta disponibilidade todas as riquezas da Terra e do Céu. Quando precisava de dinheiro, fisgava um peixe com um estáter na boca; ao desejar um licor, transformava água em vinho; se carecia de pães, materializava-os com fluidos, aos milhares; para atravessar o lago, dispensava barcos; trazia em seu magnetismo o remédio para todos os males e o empregava com prodigalidade; se quisesse escolta, podia requisitar, a qualquer momento, doze legiões de anjos para defendê-lo; se ameaçado de lapidação, se invisibilizava no Templo. São poderes de que estão revestidos os habitantes do reino dos céus – reino dos céus que não está distante, perdido em algum desvão do Infinito, mas dentro de cada um de nós, no céu de nossas almas.

A incredulidade do homem dirá que isso só era possível ao Cristo, porque Ele é filho de Deus. Mas a credulidade do Cristo disse que “[…] aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço e outras maiores fará, porque eu vou para junto do Pai”. (Jo. 14:12.) Basta crer e trabalhar nessa direção.

Porque deles é o reino dos céus. Antes de Jesus, a humildade desqualificava o homem que a possuísse, porque o tornava desprezível ante o mundo. Mas com Jesus, os detentores dessa virtude passaram a ser os potenciais possuidores do reino de Deus. E ninguém houve mais humilde que o Senhor, segundo o padre Antonio Vieira: “Humilde nasceu Jesus; humilde viveu e humilde passou do mundo. E não há maior grandeza do que essa humildade. De todos os grandes da Terra, em todos os séculos dos séculos, nenhum se lhe compara”.2 Ao tornar público seu ensino sobre a humildade, Jesus estava ensinando ao povo o caminho do acesso a Si mesmo, como se lhe dissesse: “Vinde a Mim todos vós que estais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei”.

 II – Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.

Outros tradutores substituem a expressão “que choram” por “aflitos” ou “tristes”. Chorar, na percepção de Jesus, não é debulhar-se em lágrimas contínuas nem proferir lamentações pelos cantos. É ter consciência cósmica de haver decaído de um plano superior em decorrência de infrações pessoais à Lei. É ter consciência cósmica de estar exilado temporariamente num mundo de provas e expiações. É ter consciência cósmica de haver recebido nova oportunidade e se encontrar submetido a lento processo regenerativo e ascensional. É sofrer intimamente pelo pecado próprio (ou transgressão pessoal à Lei) e pelo pecado do mundo (assim como Jesus chorou por Jerusalém), mas tendo consciência da presença do conforto divino – aquele “maná escondido” de que nos fala o Apocalipse (2:17) –, porque esse pranto da alma contrita será consolado.

Na dor do reerguimento está a própria ressurreição, porque o Cristo repreende e disciplina a quantos ama. (Ap. 3:19.) Cristão lúcido anela por esse corretivo como urgente tábua de salvação. Na seara do Senhor, todo grão de trigo iluminado pela luz do porvir há de buscar esse processo regenerador para se transformar, a exemplo do Mestre, em pão transubstancial do reino dos céus. Ninguém sofre sem dever nem se redime sem sofrer. As causas desses sofrimentos são justas porque Deus é justo, e sua nascente se estende pelas vidas passadas, já que o espírito muda de corpo, mas não de débitos e créditos; apenas os altera pelas ações do presente. Sendo este um planeta de provas e expiações, enquanto o homem for imperfeito, este mundo será a sua oficina de aperfeiçoamento, o lar temporário de sua regeneração. Mas quando for elevado a um novo nível, os que persistirem no mal serão compelidos a deixá-lo por um lar inferior.

Nesse contexto, é desinteligente o homem afogar-se no falso prazer da carne, na ilusão do poder, na transitoriedade do dinheiro, no ópio mental do espírito submetido à narcose da matéria, por desconhecer os cinco pontos básicos de seu reerguimento espiritual: quem é, de onde veio, o que faz aqui, por que sofre e para onde vai.

Paulo detinha esse conhecimento e, mesmo bafejado pelas revelações divinas, falava de um “espinho na carne” (sua queda), mensageiro de Satanás, que o esbofeteava para que não se ensoberbecesse. “[…] o poder se aperfeiçoa na fraqueza”, dissera-lhe o Senhor, e o Apóstolo provou haver aprendido a lição: “[…] Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte”. (2Co. 12:9/10.)

Há os que já superaram a consciência de sono, mesmo chumbados ao escafandro de carne. O conhecimento da Verdade não lhes ensombra o semblante, porque há alegria interior energizando-lhes o ser. Esse conhecimento gera poderoso júbilo moral, que lhes anuncia o nascimento da estrela da alva em seus corações (2Pe. 1:19) e os empolga de forma irresistível, levando-os a buscar a sua ascensão constantemente. É a afirmativa do Cristo à véspera da crucificação: “Disse-vos estas coisas para que a minha alegria esteja em vós e para que a vossa alegria seja completa”. (Jo. 15:11 – tradução de Matos Soares.) Quem conhece – ou busca conhecer – a Verdade não é pessoa triste, mas ponderada. Quem se integra no feliz “sacrifício” do bem não se entrega à ilusória euforia do mal.

Porque serão consolados. Aos que já se elevaram a esse entendimento superior e vivem de acordo com o Código divino, Deus lhes enxugará dos olhos todas as lágrimas (extinguindo suas causas), a começar do momento presente. (Ap. 21:4.)

Referências:

1Falando à Terra. Espíritos diversos/Francisco C. Xavier, 3ª ed. FEB, 1974, p. 183.

2Do País da Luz. Fernando de Lacerda, 6ª ed. FEB, 1984, vol. I, p. 207.

Artigo publicado em Reformador, mensário da FEB, em julho/15.

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