Artigos

As Bem-Aventuranças do Evangelho – IV

Enviado em 15 de outubro de 2015 | Publicado por feditora

 

as_bem-aventuranças_evangelho

Mário Frigéri

“Dia virá em que ele [o Sermão da Montanha] fará parte dos currículos escolares, mostrando que não existe orientação mais segura, nem terapia mais eficiente para os desequilíbrios do comportamento humano do que a aplicação do sublime código moral contido nos princípios apresentados por Jesus.”

Richard Simonetti1

V – Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.

Misericórdia é termo formado pelas palavras latinas miseratio (compaixão) e cordis (coração), podendo ser traduzida por “coração compadecido”. É o sentimento de compaixão despertado pela miséria alheia (simpatia), a capacidade de sentir o que o outro sente (empatia), e o ato de oferecer os tesouros do coração àqueles que nada têm, por serem “vítimas” da desventura (caridade).

Inúmeras passagens bíblicas referem-se à misericórdia como um doce refluir dos donativos divinos sobre as necessidades da alma. Jesus insiste com seus discípulos na excelência dessa virtude: “Sede misericordiosos, como também é misericordioso vosso Pai”. (Lc. 6:36.) Quando os fariseus censuram os discípulos por violarem a lei, colhendo e comendo espigas no sábado, o Senhor argumenta que os sacerdotes também violam a lei nesse dia e ficam sem culpa. E conclui: “Mas, se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos, não teríeis condenado inocentes”. (Mt. 12:1/7.)

Os sacerdotes condenavam inocentes pelos motivos mais fúteis, em decorrência dessa violação, tachando-os de sacrílegos e levando-os ao apedrejamento e à morte. Mas pela nova lei revelada pelo Cristo, a misericórdia haveria de sobrepor-se a todos os tipos de punição, estimulando o arrependimento no infrator e concedendo-lhe a oportunidade de expiar e reparar a falta cometida. Ao desfraldar essa bandeira de renovação, Jesus queria eliminar os sacrifícios e holocaustos executados sob o patrocínio da lei mosaica, estabelecendo em seu lugar um novo tempo onde a misericórdia seria o refúgio e a fortaleza da salvação das almas.

A história do homem que descia de Jerusalém para Jericó e quase foi morto por salteadores está imbuída de profunda misericórdia. Abandonado no pó da terra pelos ladrões da estrada, por ele passaram, de largo, sucessivamente, dois homens de grande prestígio em seu tempo, um sacerdote e um levita, não se condoendo nenhum deles de sua miserável situação. Por fim, também passou por ali um “desprezível” samaritano, viu-o e sua alma se encheu de compaixão. Prestou-lhe os primeiros socorros, utilizando-se de óleo e vinho, e, colocando-o sobre o animal, levou-o até uma hospedaria próxima, onde tratou dele com melhores recursos. Tendo, porém, de seguir viagem, entregou algum dinheiro ao dono da hospedaria, pedindo-lhe que cuidasse daquele homem até a sua volta, quando, então, o indenizaria de todos os gastos extras que houvesse feito.

O samaritano fez o que todo homem misericordioso deve fazer: socorrer a quem precisa, sem perguntar pela causa de sua queda, agindo, primeiro e de forma urgente, com os recursos disponíveis no momento e, em seguida, em condições mais favoráveis, com recursos mais adequados. E não dar apenas de seu coração, mas também de seu bolso, como fez o samaritano, envolvendo o dono da hospedaria no tratamento, adiantando-lhe recursos e prometendo outro tanto, se necessário, quando voltasse. O samaritano só iria sentir que seu serviço estava completo quando visse o socorrido completamente restaurado.

Jesus contou essa parábola a um doutor da lei que lhe perguntara: “Quem é o meu próximo?”. E ao concluí-la, perguntou-lhe: “Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores?”. O doutor da lei respondeu: “O que usou de misericórdia para com ele”. Jesus, então, concluiu: “Vai e procede tu de igual modo”. (Lc. 10:25/37.)

Jesus tinha em vista, nessa narrativa, dois objetivos: quebrar o preconceito dos judeus contra os samaritanos, porque (ao contrário dos dois nobres vultos judeus citados) foi um samaritano que usou de misericórdia para com aquele infeliz; e, ao mesmo tempo, abrandar a dureza de seus corações no relacionamento com o próximo.

Porque alcançarão misericórdia. A misericórdia humana produtiva é a que se espelha na Misericórdia divina e está sempre em marcha, na assistência à miséria comum, tendo à frente a caridade como iluminadora de caminhos.

 VI – Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.

Ou “puros de coração”, em outras traduções. É imperioso recordar aqui a oração do salmista: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova dentro de mim um espírito inabalável”. (Sl. 51: 10.) De todas as virtudes espirituais a serem conquistadas pelo Vencedor – aquele que venceu a sim mesmo –, esta é certamente uma das mais difíceis.

Quando se trata de purificar a alma, é de rigor trazer à cena, também, a expressão latina: In medio stat virtus (a virtude está no meio). Jesus, sendo o paradigma do equilíbrio perfeito, não podia estabelecer metas inalcançáveis ao espírito humano. Como, porém, o mal se espalhava com furiosa agressividade em seu tempo, o Mestre extrapolava no contraste para reequilibrar o fiel da balança.

Dizer que “Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no inferno” (Mt. 5:29), é hiperbolizar ou exagerar o conceito para chocar e despertar as consciências entorpecidas. Erigir em adultério o simples olhar que, com intenção menos digna no coração, um homem lança a uma mulher (Mt. 5:28), é estabelecer um princípio inovador, mas situá-lo de forma quase inalcançável nas estrelas. Há mérito em não se realizar o que se deseja, quando esse desejo se contrapõe aos mandamentos divinos, como o Cristo ensinaria mais tarde, no século XIX, através do Consolador, repondo agora em seu justo equilíbrio a lição controversa:

“641. O desejo do mal é tão repreensível quanto o próprio mal?

“Conforme. Há virtude em resistir-se voluntariamente ao mal que se deseja praticar, sobretudo quando se tem a possibilidade de satisfazer a esse desejo. Se, porém, faltou apenas ocasião para isso, o homem é culpado.”2

Quando os fariseus questionaram o Cristo a respeito de seus discípulos não lavarem as mãos ao se alimentarem, Jesus reuniu a multidão e, a fim de dar uma orientação pública a respeito, disse que não é o que entra pela boca o que contamina o homem, mas o que sai da boca. Vendo que os fariseus se escandalizaram, os discípulos perguntam ao divino Mestre o significado dessas palavras, e Ele esclarece:

“Também vós não entendeis ainda? Não compreendeis que tudo o que entra pela boca desce para o ventre e, depois, é lançado em lugar escuso? Mas o que sai da boca vem do coração, e é isso que contamina o homem. Porque do coração procedem maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias. São estas as coisas que contaminam o homem; mas o comer sem lavar as mãos não o contamina”. (Mt. 15:1/20.)

O mesmo conceito é retomado no capítulo 14 do Apocalipse, onde é apresentada uma cena majestosa, em que o Cordeiro de Deus se encontra sobre o monte Sião, tendo a seu lado os cento e quarenta e quatro mil que foram “comprados da terra”, ou seja, redimidos dentre os homens, por serem castos, em virtude de haverem vivenciado as Bem-Aventuranças de Jesus: “[…] São eles os seguidores do Cordeiro por onde quer que vá. São os que foram redimidos dentre os homens, primícias para Deus e para o Cordeiro; e não se achou mentira na sua boca; não têm mácula”. (Ap. 14:4/5.)

De tudo isso se conclui que pureza de coração é fruto da reeducação espiritual do homem. E o Evangelho é o código moral trazido por Jesus à Crosta terrestre exatamente para essa finalidade: instituir o Homem Novo, de que nos fala o Ministro Aniceto, em Nosso Lar,3 ou, como ensina Paulo, nos despojar “do velho homem, que se corrompe segundo as concupiscências do engano”, e nos revestir “do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade”. (Ef. 4:22/4.)

O coração do homem purificado é uma fonte de água viva a jorrar para a Vida eterna. (Jo. 7:38.) É preciso, portanto, proteger com o máximo desvelo essa nascente, porque dela promanam o bem e o mal que podem levar o homem à salvação (outro nome para regeneração) ou à perdição (outro nome para exílio).

Porque verão a Deus. Se “ninguém jamais viu a Deus”, como afirma João, no Evangelho (Jo. 1:18), porque Deus “habita em luz inacessível”, como revela Paulo (1Tm. 6:16), podemos imaginar, então, a que alturas insondáveis o Cristo exaltou os limpos de coração, porque, de todos os bem-aventurados, são eles que verão a Deus face a face. Mas é preciso estabelecer, com bom senso e seriedade, um justo equilíbrio entre a trajetória a ser percorrida, cheia de tropeços, e a meta a ser alcançada, plena de luz, para não esmorecer os que se encontram nos caracóis do caminho. É o que podemos deduzir das luminosas lições do Evangelho, quando estudadas com a sabedoria da inteligência e a ternura do coração.

Referências:

 1A Voz do Monte. Richard Simonetti, 9ª ed. FEB, 2010, p. 10.

2O Livro dos Espíritos. Allan Kardec, 1ª ed. FEB, 2006 (tradução de Evandro Noleto Bezerra), p. 370.

3Os mensageiros. André Luiz/Francisco C. Xavier, 11ª ed. FEB, 1978, p. 18.

Artigo publicado em Reformador, mensário da FEB, em setembro/15.

 

Deixe seu comentário: