Por Mário Frigéri
“Oxalá nós outros, nestes quase vinte séculos que nos separam da
pronunciação do Sermão da Montanha, tenhamos alcançado o grau
evolutivo que nos possibilite assimilar tão sublimes lições!”
Rodolfo Calligaris1
III – Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra
À palavra “mansos” às vezes é acrescentada a expressão “e pacíficos”, em outras traduções, ou simplesmente traduzida por “pacientes”. Paciência – numa interpretação emocional e nada etimológica – pode ser considerada a ciência da paz (paz+ciência). Paciente é o homem que suporta contrariedades sem perder a calma, ou sabe “esperar sem cansar a esperança”, no dizer de Rudyard Kipling, em seu poema If.
Paciência é também resiliência – a propriedade que tem a alma de ceder, adaptar-se às imposições da vida quando sob pressão, tornando-se não resistente como a água, e voltar sempre ao estado original, destilando paz, enriquecida pela nova experiência. A paciência suplanta todos os obstáculos e, quando em excesso, paralisa os próprios opositores. A Terra foi criada em obediência ao Planejamento divino e está predestinada, como herança, aos que conquistarem essa virtude – os que vencerem a si mesmos ao entronizar no coração as Bem-Aventuranças do Cristo.
Optando-se pela versão “mansos”, o conceito se enriquece. Enquanto o paciente se contrapõe ao irritado, o manso se contrapõe ao violento. Para se valorizar um homem de espírito manso, basta observar um de espírito abrutalhado. E o modelo da mansidão perfeita é o Ungido de Deus, que, segundo Isaías, “[…] foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; […]”. (Is. 53:7.) É a mansidão que conquista e conduz o mundo, a mansidão que os violentos abominam por lhes parecer covardia. É que eles têm uma visão distorcida dessa virtude.
Mansidão é poder. Para o escritor bíblico, Moisés foi o varão mais manso que já passou pela terra (Nm. 12:3), e todos sabem o poderoso e arrojado condutor de povos que ele foi. Se mansidão fosse covardia, Jesus não teria expulsado os vendilhões do Templo com um azorrague nem lançado por terra os que foram prendê-lo. É também o que ensina a Irmã Clara, de acordo com os apontamentos de André Luiz: “[…] A serenidade, em todas as circunstâncias, será sempre a nossa melhor conselheira, mas, em alguns aspectos de nossa luta, a indignação é necessária para marcar a nossa repulsa contra os atos deliberados de rebelião ante as Leis do Senhor. […]”.2
Na visão do poeta Casimiro Cunha, “O mundo faz vencedores, mas Jesus faz invencíveis”. E essa invencibilidade é produto da não resistência, ou mansidão divinamente ativada no coração dos que a conquistaram. É Jesus sendo esbofeteado num julgamento injusto, onde só havia acusadores mentirosos e nenhum defensor, e perguntando paternalmente a seu algoz: “Se falei mal, dá testemunho do mal; mas, se falei bem, por que me feres?”. (Jo. 18:23.) No dicionário do espírito já iluminado pela mansidão não existem palavras e expressões como vingança, represália, desforra, punição, castigo, não perdão etc. Seu coração é feito só de ternura.
Porque herdarão a terra. A Terra já é sua por direito divino desde a conquista da mansidão. Os mansos vagueiam os olhos sobre o planeta e quedam-se extasiados, porque tudo isso lhes pertence segundo a palavra do Senhor. Mesmo sem títulos de propriedade (que só trazem encargos), eles aspiram o perfume das vastas florestas e abrem os braços para os imensos oceanos, com deleite em suas almas, porque tudo isso é seu. Com um simples clique do olhar fotografam e arquivam no coração aquele solitário edelvais dos Alpes, que passa a lhes pertencer por toda a eternidade. Antes de atingirem a perfeição, já haviam conquistado o mundo com sua obediência e submissão à Lei, e, após a atingirem, hão de recebê-lo como herança, por sua plenitude na execução da Lei, transformando-se em colunas no santuário de Deus. (Ap. 3:12.) A Terra, como herança planetária, é santificado domicílio de seus corpos, e, como herança do Evangelho, abençoado lar de suas almas.
IV – Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos
Trata-se da Justiça divina, porque a justiça humana, como distante imitadora daquela, ainda não detém o poder de saciar plenamente a fome e sede de justiça do ser humano. E aqui pode estar a chave do enigma: somente é bem-aventurado quem avoca (ou chama) essa Justiça sobre si, e não visando à punição do próximo. Consciente de que a Lei se funda na equidade para com todos, tem fome e sede de Justiça, isto é, de regeneração, fome e sede de que ela, a Lei, cobrando-o em primeiro lugar, o libere do peso das infrações a que deu causa e que o contaminaram nos milênios passados. Disputa com seu irmão de jornada o feliz privilégio de encabeçar a fila do resgate, de posicionar-se sob o foco da Lei a fim de disciplinar-se. É responsável por sua redenção, não pela do próximo, ao qual ajuda a levantar a carga, não a carregá-la.
Passar pela vida em brancas nuvens, no regalo da carne, é covardia moral. Quem tem consciência dessa verdade, exulta em colocar-se de contínuo sob o cinzel da Lei, em disputar o privilégio da atenção da Lei, para o necessário resgate, até a quitação total. A meta é purificar-se debaixo desse fogo abrasante que reduz a cinzas a imperfeição humana, transformando as águas amargas de seu coração em água da Vida, e permitindo-lhe sair da carne mais depurado que ao entrar nela.
Nesse caminho, à medida que os vícios vão sendo reduzidos a pó, a visão e o júbilo espirituais se dilatam, e a criatura, sempre impulsionada para a frente e para o alto, rejubila-se e quer sempre mais, até atingir a liberação total. Ela tem uma fome devorante do pão do céu e uma sede abrasante da água da Vida. O pão do forno e a água do poço não mais a satisfazem, porque não a livram da morte. Ela agora busca a Vida inextinguível. Por isso, tudo o mais se apaga e ela quer Jesus e nada mais.
Mãe Divina
Em sua sabedoria mística, os orientais comparam a Mãe Divina (Deus) a certa mãe que dá sucessivamente vários tipos de brinquedo ao filho (poder, riqueza, prazeres mundanos etc.). A mãe se dedica a seus afazeres domésticos, enquanto o pequerrucho se alegra com seus caminhões de plástico – ou bonecas, no caso de menina. Basta, porém, que ele se canse daqueles brinquedos, lance-os fora e passe a clamar exclusivamente por ela, e a mãe larga o trabalho, corre para o filho e o toma nos braços para doar-se a si mesma.
Enquanto estivermos satisfeitos com as coisas deste mundo, a Mãe Divina nos deixa brincar em consciência de sono. Mas, tão logo nos desviamos da sua criação e desprezamos seus brinquedos, lhe estendendo os braços e passando a chamar por Ela, Ela deixa tudo o que estiver fazendo e gentilmente vem se revelar a nós.3
O espírito encarnado em ascensão voluntária pode ser comparado a um alpinista subindo a montanha. No começo, as dificuldades tornam sua subida penosa e lenta; mas logo que supera os primeiros obstáculos, descobre na rocha os sulcos ou pinos deixados por alpinistas anteriores e transpõe, aos saltos, os obstáculos do caminho, chegando rapidamente ao cume. E Deus, que é Pai amoroso e justo, sabe dosar esse processo depurativo de acordo com as forças que cada um vai acumulando ao longo da jornada.
Porque serão fartos. Quando o Cristo explicou às multidões que não foi Moisés, com o maná, quem lhes deu o pão do céu, mas que o verdadeiro pão do céu quem lhes dava era o Pai celestial através d’Ele, elas lhe suplicaram à uma voz: Senhor, dá-nos sempre desse pão! E o Senhor lhes respondeu: Eu sou esse pão! Eu sou o pão da Vida! O que vem a mim jamais terá fome, e o que crê em mim jamais terá sede!. (Transcrição livre de João, 6:32/5.) Com isso, Ele estava dizendo que seu Evangelho é verdadeira comida e sua Doutrina é verdadeira bebida, saciando a fome e a sede daqueles que O buscarem de todo o coração.
1O Sermão da Montanha. Rodolfo Calligaris, 7ª ed., FEB, 1989, p. 211.
2Entre a Terra e o Céu. André Luiz/Francisco C. Xavier, 6ª ed. FEB, 1978, p. 139.
3O Sermão da Montanha segundo o Vedanta. Swami Prabhavananda, 9ª ed., Ed. Pensamento, 1999, p. 103.
Artigo publicado em Reformador, mensário da FEB, em agosto/15.